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Um Teatro em gestação: a planta, a criança, a fala

Escrito por Julia Raiz do Nascimento.

Voltar à Maringá como turista e me deparar com o que está acontecendo na cena independente teatral é sempre como tomar fôlego. As iniciativas culturais não institucionalizadas, aquelas que por não estarem necessariamente atreladas a um órgão maior ficam à margem da produção “oficial”, podem gozar da benção de serem subversivas.

E é nesse contexto de manifestação cultural deslocada, que procura alforria em relação aos agentes tradicionais de produção artística, que eu pretendo falar da encenação de Florescerro ou Um erro que vive, com texto de Gustavo Hermsdorff, direção Lucas Fiorindo, com a dupla André Fabrício e Vinicius Huggy no palco, cenário assinado por Ana Paula Siste e produção de Rachel Coelho. Preciso, primeiramente, dizer que me é muito satisfatório que artistas jovens viabilizem, por pura força de vontade, desde a produção do espetáculo até o espaço para a crítica, onde escrevo essas percepções sobre a peça. Contemplando então várias plataformas de realização e divulgação teatral.

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O texto, escrito em 2010, deriva da participação do autor na Oficina de Dramaturgia do SESI que tem como norte (pelo menos inicial) o trabalho do dramaturgo paulistano Roberto Alvim. O espetáculo se materializou no dia 12/12 na Oficina de Teatro da UEM e é campo propício para discutir algumas questões do chamado Teatro Contemporâneo. Considero aqui contemporâneo em dois sentidos: 1) como aquilo que pertence ao tempo de agora e 2) como uma atitude epistemológica diante da produção/recepção artística. Assim, amplio um pouco mais o conceito de contemporâneo para pensá-lo também como um posicionamento estético-político diante do presente.

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Contemporâneo é aquele que não coincide perfeitamente com o seu tempo, não está sossegado a suas pretensões. E é justamente nesse deslocamento, sendo inatual, que consegue aprender mais do que os demais o seu próprio tempo (ideias que empresto de Agamben[1]). Experimentar uma atitude anacrônica em relação ao seu próprio tempo, me parece, portanto, um caminho muito fértil a seguir, já que permite uma relação de não comodismo/obediência ao presente.

Ao ver Florescerro no palco do Teatro da UEM na sexta tentei apreender como a estética de Alvim – a poética do Transumano, os trabalhos da Cia Clube Noir (Alvim e a esposa Juliana Galdino) – tinha sido reconfigurada/reconstruída/ressignificada pelo grupo responsável pela encenação a fim de parir uma coisa própria. Investir no autoral, no que é “seu” – seja lá o que isso for – me parece extremamente relevante quando se pretender fazer/discutir arte. A partir disso, entendam minha satisfação em ouvir o André F. abandonar o “r” tepe (típico paulistano) da palavra persegue, para abraçar – ao longo da peça – o “r” retroflexo (típico maringaense).

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Justamente, penso que o posicionamento estético do Alvim não pode se tornar um paradigma a ser seguido como uma subjetividade reinante da onde procede outras derivações menores e menos acabadas da mesma estética. E tenho absoluta certeza de que essa não é a vontade de iniciativas tão bacanas como a Oficina de Dramaturgia do SESI.

Identifiquei alguns pontos que relacionam a encenação de Florescerro à poética de Alvim: o cenário mínimo, a presença dominante do escuro, o trato tensionado com a linguagem, a ausência de uma preocupação narrativa tradicional, etc, etc. Felizmente, o grupo não se restringiu a seguir paradigmas e investiu no que foi chamado de Teatro Metafísico. A presença robusta dos dois únicos atores no palco (seguraram o rojão!) viabilizou que o diálogo proposto pelo diretor Lucas F. com a filosofia taoista florescesse em resultados interessantes no palco.  Chego aqui ao que mais me interessa na peça: a possibilidade de pensar a linguagem como mantra.

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Linguagem como mantra…Dessa constatação meio mal acabada, ainda em processo, surgem outros apontamentos que pretendo pontuar aqui. É preciso afirmar, primeiramente, a importância da criação (no teatro) de um outro espaço energético, onde se instaura uma percepção temporal diversa da neo-liberalista, preocupada em chegar a algum lugar e chegar lá rápido (empresto a ideia da fala do Lucas F., diretor, na discussão proposta depois da encenação. Iniciativa mais do que bem-vinda!).

O teatro vira, assim, espaço para o ritual, onde o poder da palavra pode invocar sensações e trocas energéticas. Não se pretende, entretanto, sagrado, mas dessacralizador de mitos que precisam ser REcontados. Esse teatro se preocupa cada vez menos com uma linguagem referencial: aquela em que o signo equivale/representa algo no mundo. A palavra flor – que aparece 11 vezes no texto -, por exemplo, se amplia enormemente invocando inúmeros sentidos. Nenhum dos usos se estabelece de maneira mais ou menos “correta” do que o outro. Já que o signo não encontra um referencial imediato na realidade, se transforma em som-gestacional: prepara um novo caminho para um novo signo, como se provesse uma criança ou uma mudinha de planta.

Quero enfatizar que quando falo de linguagem, absolutamente não estou me restringindo somente ao texto escrito, mas me remeto ao que foi criada no palco a partir de um diálogo entre todos os elementos teatrais: iluminação, cenário, figurino, direção, atuação, público, etc, etc. O texto primeiro (escrito da Oficina do SESI), de maneira nenhuma, se estabelece como discurso autoritário, da onde deriva “fielmente” o espetáculo teatral.

Sobre essa relação texto-encenação, me chama a atenção que a escrita de Gustavo H. explora o desfacelamento do indivíduo não apenas na desconstrução da sua identidade (os “personagens” não têm nome, para me restringir a um exemplo evidente). Mas opta por uma escolha, mais radical e inteligente, pelo desmembramento físico de A (personagem): arrancar os dentes, despedaçar os braços. Passagens que infelizmente não foram exploradas em toda sua potencialidade quando o texto se transforma em peça.

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Por outro lado, a encenação propõe outras passagens que não aparecem no texto escrito, como é o caso da belíssima cena do banho ou, o que é eu prefiro chamar de batismo, em que A é lavado por B. É no balanço de erros e acertos que se faz teatro. E é aí que a arte teatral ganha meu coração. Por ser uma experiência única que nunca se repete tal-qual e que não precisa ser pensada apenas como encarnação de um texto preocupado em comunicar algo inteligível. Outras formas de troca podem ser estabelecidas nesse ritual coletivo sem que o “racional” seja estabelecido como expressão/percepção reinante.

Desvencilhada dos grilhões que uma linguagem referencial pode estabelecer, a peça abre espaço para: 1) ruídos e desvios de linguagem; 2) entonações desabituais; 3) atenção especial à articulação das pa-la-vras. É, sem dúvida, uma linguagem que explora a potencialidade da tensão estabelecida pelos oximoros. Temos um oximoro quando temos a combinação contraditória de termos, como na passagem “A: (…) Aquela feita por mortos para os cegos de olhos e os surdos de ouvidos: a profecia do sorriso”. A questão é que o teatro tem muito mais a oferecer quando investe na problematização da linguagem. Florescerro faz justamente isso. Pode algo fértil (mesmo que efêmero) florescer de um erro? Pode a linguagem artística ser espaço profícuo para desvios? Acredito que sim.

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É claro que o encontro entre iniciativas como Florescerro e o público pode ser alienante – apenas no sentido de ser, para alguns tipos de público, difícil de conectar-se à experiência proposta no palco. Por outro lado, desse encontro podem surgir n questionamentos, já que abre espaço para fala desnaturalizada que desafia um cotidiano muitas vezes utilitário e reduzido lexicamente. Agora, preciso retomar o uso da palavra alienante para estabelecer uma ressalva. Várias manifestações de teatro contemporâneo, ou numa abordagem mais teórica do chamado teatro pós-dramático, são acusadas de serem apolíticas e por isso alienantes. Penso justamente o contrário.

As questões propostas por vários movimentos do teatro contemporâneo, mesmo sem conteúdo político explícito, ao estabelecerem uma outra percepção de tempo e subjetividade, problematizam profundamente discursos dominadores, como o científico e o religioso.  Ao colocar em cheque os conceitos de “verdade” e “realidade”, o teatro pode ser altamente subversivo, inclusive, por dar voz aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicadores, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos”.

É claro que nem todo mundo precisa ter interesse em “consumir” (na falta de palavra melhor!) a estética apresentada por Florescerro, e isso é totalmente aceitável. Legal mesmo é a gente ter diversidade na cena teatral, ninguém precisa definir uma vertente única para o teatro contemporâneo brasileiro. E apesar de todas as dificuldades que envolvem o fazer teatral no Brasil, temos talento de sobra para não precisar reduzi-lo.

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E aqui me lembro de uma discussão que tive com uma amiga querida em Curitiba. Ela estava com a difícil tarefa de escrever, para um jornal (talvez na Gazeta do Povo), um texto intitulado O que é uma boa peça pra você?. É claro que o título gerou vários questionamentos que não cabe aqui colocar, mas me interessa destacar aonde eu cheguei com tal discussão. Me parece que uma “boa peça” (estranho usar essa expressão!) é aquela da onde você não sai ileso.

Me explico: a indiferença não é uma opção, porque o seu trato digestivo tá tão incomodado com o que você “consumiu” que reações das mais diversas são inevitáveis. Pode ser raiva, pode ser tensão, pode ser tesão (o Word pede que a palavra seja trocada por excitação, me poupe!) pode ser melancolia, pode ser tanto mais. Mas tá ali algo que te faz pensar e sentir e pensar e sentir e pensar e sentir depois que as luzes se acenderam e enquanto você dirige pra casa. Não é teatro que você logo esquece e vai jantar com a consciência limpa e o estômago vazio.

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É claro que isso não vem de graça né. E se eu fui embora pensando sobre a peça não é porque ela não teve defeitos, mas porque, entre outras coisas, teve entrega. A presença dos atores André F. e Vinícius H. sustentou um palco pequeno e uma casa lotada. Diante de uma atuação corajosa estava um público que, acredito, não pôde deixar de notar a atenção profissional dispensada tanto ao macro (destaco pessoalmente o trabalho com o fogo, a água e os X kg de areia!!! e a importância dada ao programa/encarte distribuído), quanto ao mínimo (a cueca utilizada por André F. e as “medalhas” despregadas da roupa do Vinícius H., por exemplo). Mérito da responsável pela confecção de figurino Ana Brás Furlan. É bonito ver ator suando no palco. É bonito ver toda a equipe esgotada depois do espetáculo.

Por fim, Florescerro cria subjetividades numa tensão constante. Vozes que, a fim de pensar sobre a linguagem, têm que desaprender a falar. Presenças que, a fim de pensar sobre si mesmo, têm que negar o que se conhece por ser – ideia baseada nas noções de família, território, língua. Enfim, problematizar o batismo, muitas vezes opressor, da cultura do homem não-animal que acha que o mundo expresso pela consciência racional é o único possível[2].

 

[1] AGAMBEM, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios.

[2] Essa ideia é uma impressão mal-acabada de uma leitura rápida de Nietzschie, Humano, Demasiado Humano.


Florescerro

Outra publicação que vem com atraso são as fotos do espetáculo “Florescerro”, que teve apresentação única no último dia 12, na Oficina de Teatro da UEM, integrando a programação da Temporada Universitária. Foi a primeira produção de montagem que assino sozinha. Uma experiência e tanto. Grata ao autor, Gustavo Hermsdorff, pelo convite. Grata aos colegas com quem compartilhei esse parto: Lucas Fiorindo (diretor), André Fabrício (ator), Vinicius Huggy (ator e figurinista), Ana Paula Siste (cenógrafa), Ana Brás Furlan (costureira rápida e maravilhosa). Por falta de um, tivemos dois fotógrafos incríveis registrando esse momento: Renato Domingos e Rafael Saes. Postarei por partes, começando pelo Renato, que é o fotógrafo “oficial” do evento.

Gratidão.

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Noite de estreias nesta sexta

florescerro3Esta semana vou compartilhar com alguns amigos uma noite de estreias no teatro maringaense. Pela primeira vez um texto do Núcleo de Dramaturgia do SESI de Maringá será levado ao palco. O autor, Gustavo Hermsdorff, estreia como dramaturgo encenado. Ele idealizou esse projeto de montagem e convidou os companheiros de Núcleo para darem vida a ele: Lucas Fiorindo em sua primeira direção; Vinicius Huggy, em dupla estreia (como ator e figurinista) e André Fabrício, que embora faça teatro desde o fim dos anos 90, monta seu primeiro espetáculo totalmente maringaense. Ana Paula Siste assina o cenário e eu pela primeira vez assino a produção de um espetáculo que vi ser construído!!! Juntos formamos o grupo Ajna e temos trabalhado muito para que tudo dê certo.

“Florescerro” terá apresentação única na Oficina de Teatro da UEM na próxima sexta-feira, dia 12, às 20h30. A entrada é gratuita e o evento integra a programação da Temporada Universitária. Agradecemos a Pedro Ochoa pelo convite! Venham prestigiar, mas cheguem cedo porque o teatro é pequeno!


‘Yerma’ na Temporada

A estreia do espetáculo “Yerma”, que teria sido no dia 2/12, foi adiada por um motivo trágico: o pai de uma das atrizes faleceu naquela tarde. Apesar da notícia recente ainda ecoar no elenco, eles decidiram confirmar a estreia do espetáculo para esta quinta, dia 4, às 20h30 na Oficina de Teatro da UEM. A entrada é franca e o evento integra a programação da Temporada Universitária.

O texto de Federico Garcia Lorca foi estudado junto a várias outras obras do autor, em um curso ministrado por Elison Pereira, que também assina a direção. Dentre todas as obras do autor, esta foi a escolhida em comum acordo pelos alunos para ser levada ao palco. Nesta apresentação foi necessário reformular as participações para suprir a ausência da atriz que está em luto.

Escrita em 1934, caracteriza-se como uma obra popular de caráter trágico, ambientada na Andaluzia do início do século 20. Yerma é uma mulher que vive o drama de não poder conceber um filho. Busca de todas as formas engravidar e enfrenta a indiferença do marido, Juan, que não compartilha da sua angústia. O embate entre os dois é conduzido a um desfecho surpreendente.

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temporada

A Temporada Universitária começou dia 13 de novembro e muitas coisas já passaram pelo palco da Oficina de Teatro da UEM, mas ainda dá para curtir o evento até dia 14/12. A programação é composta, basicamente, pelas cenas curtas dos alunos do curso de Artes Cênicas da UEM, realizadas para a disciplina de Direção. Há, também, montagens do TUM e de outros grupos da cidade, como o Meu Clown e o mais recente grupo de pesquisa criado na cidade, o Ajna, sobre o qual falarei em outra postagem.

Veja no folder abaixo o que ainda é possível prestigiar gratuitamente.

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Agenda cultural

Continuando a agenda cultural dos próximos dias …

Também nesta sexta-feira o grupo Meu Clown, de Maringá, mostra seu “Cotidiani Clown” no projeto Convite ao Teatro, da Secretaria Municipal de Cultura. A apresentação é às 20h30 no Teatro Barracão, com entrada gratuita. O grupo é o mais novo queridinho do público local. Suas apresentações estão sempre lotadas e a criançada adora!

cotidiani

No mesmo horário (20h30, sexta), na Oficina de Teatro da UEM, o grupo Pau de Fita apresenta o espetáculo “Médico à força” na Temporada Universitária. O evento, aliás, começou dia 13 de novembro e segue diariamente até dia 14/12 (domingo) com apresentações diárias. Além de espetáculos teatrais e musicais, vários estudantes do curso de Artes Cênicas estão apresentando cenas curtas da disciplina de Direção. Vale ver para ir sacando os novos talentos locais. Sobre isso escreverei em outra postagem.